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Crimes internacionais por Bruno Lamenha

Caros futuros colegas,


É com muita felicidade que trago a vocês o texto abaixo, de autoria do colega Bruno Lamenha, Procurador da República aprovado em 2º lugar no 27º Concurso (último concurso). Mestre em Direito e professor do Curso Ênfase (Intensivo Procurador da República), Lamenha tem muito a nos dizer sobre um tema que cai bastante na prova de Direitos Humanos, qual seja, CRIMES INTERNACIONAIS. Confiram abaixo!


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Amigos, como não tenho a disciplina necessária para alimentar um blogue com a regularidade que considero razoável, perguntei a Lordelo se ele se importaria em, eventualmente, me ceder o espaço para que eu possa compartilhar algumas notas sobre Proteção Internacional dos Direitos Humanos, com foco, a princípio, no próximo concurso do MPF. Ele, sempre gentil, topou a proposta.


É bom lembrar, desde logo, que, em se tratando de um blogue, não há, de minha parte, nenhuma pretensão ou rigor acadêmico. Minha ideia é oferecer umas dicas de tiro curto mesmo. Algo como um pontapé inicial para explorar alguns temas importantes na prova do MPF (já que o edital é gigante e o tempo, sempre diminuto). Para começar, eu tinha pensado em tratar de um tema há algum tempo em voga e muito caro à instituição: a imprescritibilidade dos crimes praticados por agentes do Estado durante a ditadura militar. Este tema, por sinal, já foi até explorado na prova subjetiva do 26 CPR (questão 4). Para muitos de vocês, talvez seja algo até batido. Mas que sempre merece muita atenção.


Ainda que, à primeira vista, a questão seja de direito interno, as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil dão um contorno especial à temática. Em 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que, afastando a incidência da Lei da Anista (Lei n. 6.683/79, reconheceu, entre outras determinações, a obrigação do Brasil de perseguir e punir os responsáveis pelo desaparecimento forçado das vítimas da Guerrilha do Araguaia. Isto a despeito do STF, na ADPF 153, ter declarado a constitucionalidade da Lei da Anistia (a este propósito, tramita no STF a ADPF 320, na qual se pleiteia, em síntese, uma certa compatibilização entre as decisões nacional e internacional aparentemente contraditórias, à luz da teoria do duplo crivo ou duplo controle, proposta pelo professor André de Carvalho Ramos). Além disso - e essa tese tem sido encampada pelo MPF em diversos casos (v.g. Caso Rubens Paiva, Caso Riocentro) - a violência de Estado perpetrada durante a ditadura militar é enquadrada como crime contra a humanidade, esta uma categoria própria do direito internacional e um dos fundamentos centrais da tese da imprescritibilidade de tais delitos.


Só que para compreender bem este debate (que trataremos melhor em um momento posterior), o melhor caminho, em minha opinião, é dispor de um instrumental adequado. Falamos de crimes contra a humanidade como categoria do direito internacional. Trata-se de espécie da categoria-gênero “crimes internacionais”. E o que diabos são crimes internacionais? (este, por sinal, é o item 9a do programa de Direito Internacional na Resolução do 27 CPR).


A noção de crimes internacionais configura uma categoria de difícil conceituação, notadamente para países de tradição romano-germânica, como o Brasil, já que as linhas fundamentais da categoria são delineadas a partir de uma lógica ínsita ao common law. Há significativa divergência na doutrina internacionalista acerca do alcance do conceito e mesmo das espécies abrangidas pela categoria.


Quanto à sua estrutura, segundo Gueiros e Japiassú, os crimes internacionais se bipartem em responsabilidade individual (imputação de uma conduta a um tipo penal de direito internacional) e defences (hipótese de exclusão da punibilidade). A questão do elemento subjetivo, lembram os autores, ainda é objeto de grande controvérsia na doutrina.


Apesar das conhecidas divergências, podemos entender os crimes internacionais, na esteira de M. Cherif Bassiouni, como ilícitos internacionais que lesam bens jurídicos e interesses internacionalmente protegidos. São previstos em tratados ou mesmo como costumes internacionais (lembrem que no common law é plenamente admissível a existência de crimes tendo como fonte o costume; além disso, o costume é fonte do Direito Internacional, como dispõe o art. 38.3 do Estatuto da CIJ) e os fatores de incriminação se desdobram da proteção de valores, pessoas e interesses internacionais significativos até abranger a repressão a condutas de caráter transnacional ou que possam ser, vantajosamente, coibidas através de uma concertação de esforços internacionais.


Os crimes internacionais, embora possam conduzir reflexamente à responsabilidade internacional do Estado por eventual quebra de dever de persegui-los, se destina à responsabilização individual dos agentes que os perpetraram. Lembra Bassiouni, contudo, que o desenvolvimento de mecanismos de repressão internacional ao crime organizado, à corrupção e ao tráfico de drogas tem delineado, para o futuro, a possibilidade de responsabilização criminal de pessoas jurídicas no direito internacional.


Um problema inicial de uma sistematização e até justificação da existência de crimes internacionais, enfrentado sobretudo pelos Tribunais Internacionais ad hoc de Nuremberg e de Tóquio, na década de 1940, e da ex-Iugoslávia e Ruanda, na década de 1990, foi a alegação de que os crimes internacionais eram definidos ex post facto, em violação ao vetusto princípio da reserva legal.


Apesar da significativa divergência a este respeito, prevaleceu a tese de que, no direito internacional, dada a sua matriz eminentemente consuetudinária, vigeria a regra do nullum crimen sine iure (e não exatamente do nullum crimen sine lege), uma vez que a violação de valores humanitários fundamentais já se perfazia costume internacional desde as primeiras tentativas de estabelecimento de leis da guerra, crimes contra paz e contra a humanidade, notadamente a partir da Segunda Convenção da Haia sobre Costumes da Guerra Terrestre de 1899, na qual se delineou a conhecida Cláusula Martens[1] (que também aparece nas Convenções da Haia de 1907), ou ainda, nos pactos de não-agressão de Briand-Kellog (1928)[2] e de Ribbentrop-Molotov[3] (1939) e nas quatro Convenções de Genebra (1949)[4]. Vale registrar ainda, no pós 1ª Guerra Mundial, a frustrada tentativa das potências vencedoras de responsabilizarem o Kaiser alemão Guilherme II (o art. 227 do Tratado de Versalhes chegou a prever a criação de um tribunal para tal fim), uma vez que, asilado na Holanda, este país sempre se recusou a extraditá-lo para julgamento.


No caso Dusko Tadic, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (ICTY ou TPII), criado por resolução do Conselho de Segurança da ONU (Resolução CSONU nº 827, de 1993), afirmou que o princípio da reserva legal pretende proteger, tão-somente, as pessoas de serem castigadas por atos que o agente acreditava ser lícito no momento da sua prática[5]. Não seria o caso, portanto, dos crimes internacionais, notadamente aqueles de ius cogens.


De todo modo, a criação do Tribunal Penal Internacional (TPI), em 1998 (v. Estatuto de Roma), como Corte Permanente, delineia a adoção do princípio da reserva legal no âmbito do direito internacional, uma vez que os delitos perseguidos pelo TPI estão previstos no próprio Estatuto de Roma – ainda que densidade de seu conteúdo enseje alguma discussão acerca da taxatividade das condutas. Alguns internacionalistas, como Kai Ambos, sustentam a necessidade de estabelecimento de uma Parte Geral do Direito Penal Internacional, estabelecendo regras gerais de imputação e outros institutos necessários à correta instrumentalização de suas normas incriminadoras.


Bom, acho que já passei da conta. Prometo tentar encurtar mais os textos. Na próxima postagem, continuamos com a classificação dos crimes internacionais, com especial atenção para os chamados crimes de ius cogens. Até lá! =]


O que ler sobre crimes internacionais? Bom, aqui eu posso falar do que eu dei uma olhadela para o concurso, longe – como disse – de querer posar de especialista no assunto. Gueiros e Japiassú, em seu livro de Direito Penal, Parte Geral, tem um capítulo (XXI), embora curtinho, com informações valiosas sobre uma noção de crimes internacionais. O professor André de Carvalho Ramos, que dispensa apresentações, no Título VI (A Apuração da Responsabilidade Individual pelas Violações de Direitos Humanos) do Processo Internacional de Direitos Humanos é uma leitura excelente e obrigatória para quem está estudando para o MPF, embora a discussão fique mais centrada nos crimes de ius cogens e no TPI. Existem outros títulos em português, mas não conheço a ponto de recomendar. O livro de entrada de Bassiouni sobre crimes internacionais, infelizmente em inglês (não, você não precisa ler livros em inglês para passar no MPF. Esta é só uma infeliz coincidência) é o Introduction to Internacional Criminal Law. Mas pelo preço e pela densidade, não acho que valha a pena adquirir só para o concurso. Ler todo, muito menos. É uma obra que, na perspectiva do concurso, serve para você dar uma consultada em alguns pontos específicos, em que fique difícil encontrar literatura em português e se você tiver tempo e disposição para isso. Só o menciono porque o professor Aragão, aparentemente, gosta bastante do autor (tanto que alguns candidatos, acho que do 25 CPR, chegaram a traduzir partes do livro em um esforço coletivo) e, de fato, é um dos maiores especialistas do mundo na matéria. Também merece uma menção a leitura do famoso Graal, que o Lordelo disponibilizou em outra postagem, que (embora se trate de um resumão) tá bacana neste ponto.


NOTAS:


[1] A Cláusula Martens é uma homenagem ao seu idealizador, o delegado russo Fyodor Fyodorovich Martens nas Conferências de Paz da Haia em 1899, assim prevista no preâmbulo das referidas Convenções da Haia sobre a Guerra Terrestre: "Até que seja promulgado um Código mais completo das leis da guerra, as Altas Partes Contratantes julgam oportuno declarar que, nos casos não incluídos nas disposições por elas adotadas, as populações e os beligerantes estão submetidos à proteção e ao império dos princípios do direito internacional, como como resultado dos usos e costumes das nações civilizadas, das leis da humanidade e das exigência da consciência pública". Em síntese, a Cláusula Martens pode ser entendida como o coração do direito humanitário e norma imperativa em sentido estrito, ou seja, integrante do ius cogens. Isto significa, entre outras coisas, que ela é oponível a toda a comunidade internacional, afirmando-se como obrigação dotada de superioridade normativa.


[2] Também conhecido como "Pacto de Paris", recebe o nome "Briand-Kellogg" em razão de seus idealizadores: o Secretário de Estado dos EUA, Frank Kellogg, e o ministro francês de Relações Exteriores, Aristide Briand. Propugnava a renúncia da guerra de agressão (debellatio). Embora tenha fracassado em termos políticos, afirmou-se, na história do direito internacional, como um marco importante na progressiva proscrição da guerra como instrumento legítimo.


[3] Pacto de não-agressão firmado entre União Soviética e Alemanha Nazista nos meses que antecederam o início da Segunda Guerra Mundial. Leva o nome dos dois chanceleres dos países: Joachim von Ribbentrop, pela Alemanha, e Vyacheslav Molotov, pela União Soviética. Também fracassou em termos políticos, já que Hitler invadiu a URSS, violando o pacto, em 1941, na famigerada Operação Barbarossa. Apesar de alguns aspectos controversos (como a assinatura de protocolos secretos em que ambos os países repartiam a Europa do Leste em zonas de influência), firmou-se como como outro contributo importante à progressiva renúncia à guerra de agressão por parte da comunidade internacional, o que se afirmará, definitivamente, com a Carta da ONU de 1945.


[4] As quatro Convenções de Genebra de 1949 são o marco regulatório contemporâneo do direito humanitário, ou seja, o ramo do direito internacional cujo objeto versa sobre a proteção do indivíduo no contexto dos conflitos armados. As quatro Convenções versam, respectivamente, sobre (i) guerra terrestre; (ii) guerra marítima; (iii) prisioneiros de guerra; (iv) populações civis. Vale pontuar aqui que, em 1996, a Corte Internacional de Justiça, na Opinião Consultiva sobre a Legalidade das Armas Nucleares, consignou que os princípios do direito humanitário, o que contempla, em grande medida, as Convenções de Genebr,a são fundamentais para o respeito da pessoa humana e da consideração fundamental de humanidade, constituindo “regras básicas devem ser observadas em todos os Estados, tenham eles ratificado ou não as convenções que as contenham, porque são princípios intransgressíveis do direito internacional costumeiro” (ver parágrafo 79).


[5] Esta passagem não está no julgamento do mérito do caso, mas em uma decisão da Câmara de Apelação sobre a competência do ICTY. “ (ver Prosecutor vs. Dusko Tadic. Decision of the defense motion on jurisdiction, 1995, parágrafo 69). Este precedente, inclusive, é um interessante exemplo da aplicação do princípio do kompetenz-kompetenz no direito internacional. A defesa de Tadic alegava, entre outros fundamentos, que o processos seria nulo, uma vez que o CSONU não teria legitimidade, à luz da Carta da ONU, para criar um Tribunal Internacional. Segundo André de Carvalho Ramos (in Processo internacional de direitos humanos), a Câmara de Apelação reconheceu que era legítimo à defesa levantar tal “preliminar” e concluiu que não houve atuação ultra vires do CSONU na criação de um Tribunal Penal Internacional, já que o Capítulo VII da Carta da ONU autoriza a adoção de diferentes medidas para a garantia da paz e segurança internacionais, sem enumerá-las taxativamente. Em última instância, portanto, coube ao ICTY analisar o âmbito de sua própria competência, o que implica afirmar o reconhecimento de limites à atuação do próprio CSONU.

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