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A legitimidade coletiva da Defensoria Pública - ADI 3943

A legitimação coletiva da Defensoria foi acrescida à Lei da Ação Civil Pública por força da Lei n. 11.448/07. Na época, essa legitimação não estava prevista na Constituição, o que veio a ocorrer posteriormente, por força da EC n. 80/2014, que modificou o seu art. 134:


Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)


Sobre o tema, existem basicamente duas grandes discussões:


1ª DISCUSSÃO - O que significa a expressão “necessitados” (art. 134)? Na doutrina, encontramos três posições:


1ª corrente (restritiva) - Entende que a atuação da Defensoria só existe nos casos de hipossuficiência econômica. Assim, somente nestes casos a Defensoria poderia propor ação coletiva. Isso porque o art. 134 da CF, que trata dessa instituição, mesmo após a EC n. 80, alude ao art. 5º, LXXIV da CRFB/88, que prevê que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.


Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)


Art. 5º, LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.


2ª corrente (ampliativa – deve ser adotada em concursos de Defensoria) - Entende Ada Pellegrini Grinover que o estudo da finalidade institucional da Defensoria Pública depende da análise da LC 80/94 que, em seu art. 4º, prevê dois tipos de funções da Defensoria:


a) Funções típicas - Defesa dos sem recursos (hipossuficiência econômica);


b) Funções atípicas - São aquelas relacionadas com a existência de hipossuficiência técnica ou organizacional. Ex.: curadoria especial (cuja situação mais comum ocorre na hipótese de réu revel citado por edital). Nesse caso, não se exige que as pessoas defendidas sejam necessitadas sob o aspecto econômico.


Se levada ao extremo, essa corrente permite a legitimação da Defensoria Pública até mesmo nas relações de consumo envolvendo bens de luxo (ex.: veículo BMW), eis que, frente ao poder econômico da indústria de veículos, mesmo um consumidor de um caríssimo veículo é um hipossuficiente sob o ponto de vista organizacional. Justamente por isso, deve ser vista com cautela.


3ª corrente (STF e julgados mais recentes do STJ) - Seguindo-se a regra geral do processo individual, a Defensoria Pública pode ajuizar ações coletivas se, de alguma forma, puder beneficiar pessoas hipossuficientes sob o aspecto econômico, mas isso não significa que a ação coletiva deve beneficiar apenas hipossuficientes econômicos. Basta que, de alguma forma, a ação possa vir a beneficiar pessoas carentes, ainda que em conjunto com outras pessoas - não carentes. Em síntese, a atuação deve ter em vista as pessoas sem recursos, mas não se pode condicionar a atuação da Defensoria Pública à comprovação prévia da pobreza do público-alvo, sob pena de inviabilizar a sua atuação.


EXPLICANDO MELHOR A TERCEIRA CORRENTE: em precedentes mais recentes, firmou-se, no Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de que a Defensoria Pública somente pode ajuizar ações coletivas em defesa de interesses dos hipossuficientes, assim entendidos os necessitados sem recursos suficientes (CF/88, art. 5º, LXXIV). É o que decidiu a 4ª T do STJ no REsp 1.192.577-RS (DJe 15/08/2014 RT vol. 949 p. 373):


PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EMBARGOS INFRINGENTES. LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA PARA A PROPOSITURA DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LIMITADOR CONSTITUCIONAL. DEFESA DOS NECESSITADOS. PLANO DE SAÚDE. REAJUSTE. GRUPO DE CONSUMIDORES QUE NÃO É APTO A CONFERIR LEGITIMIDADE ÀQUELA INSTITUIÇÃO.


2. Na hipótese, no tocante à legitimidade ativa da Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública, não bastou um mero exame taxativo da lei, havendo sim um controle judicial sobre a representatividade adequada da legitimação coletiva. Com efeito, para chegar à conclusão da existência ou não de pertinência temática entre o direito material em litígio e as atribuições constitucionais da parte autora acabou-se adentrando no terreno do mérito.


3. A Defensoria Pública, nos termos do art. 134 da CF, "é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV". É, portanto, vocacionada pelo Estado a prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que "comprovarem insuficiência de recursos" (CF, art. 5°, LXXIV), dando concretude a esse direito fundamental.


4. Diante das funções institucionais da Defensoria Pública, há, sob o aspecto subjetivo, limitador constitucional ao exercício de sua finalidade específica - "a defesa dos necessitados" (CF, art. 134) -, devendo os demais normativos serem interpretados à luz desse parâmetro.


5. A Defensoria Pública tem pertinência subjetiva para ajuizar ações coletivas em defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, sendo que no tocante aos difusos, sua legitimidade será ampla (basta que possa beneficiar grupo de pessoas necessitadas), haja vista que o direito tutelado é pertencente a pessoas indeterminadas. No entanto, em se tratando de interesses coletivos em sentido estrito ou individuais homogêneos, diante de grupos determinados de lesados, a legitimação deverá ser restrita às pessoas notadamente necessitadas.


6. No caso, a Defensoria Pública propôs ação civil pública requerendo a declaração de abusividade dos aumentos de determinado plano de saúde em razão da idade.


7. Ocorre que, ao optar por contratar plano particular de saúde, parece intuitivo que não se está diante de consumidor que possa ser considerado necessitado a ponto de ser patrocinado, de forma coletiva, pela Defensoria Pública. Ao revés, trata-se de grupo que ao demonstrar capacidade para arcar com assistência de saúde privada evidencia ter condições de suportar as despesas inerentes aos serviços jurídicos de que necessita, sem prejuízo de sua subsistência, não havendo falar em necessitado. 8. Diante do microssistema processual das ações coletivas, em interpretação sistemática de seus dispositivos (art. 5°, § 3°, da Lei n. 7.347/1985 e art. 9° da Lei n. 4.717/1965), deve ser dado aproveitamento ao processo coletivo, com a substituição (sucessão) da parte tida por ilegítima para a condução da demanda. Precedentes. 9. Recurso especial provido.


Além disso, a EC n. 80 reiterou a necessidade de se observar o art. 5º, LXXIV, da CF/88. Nessa linha, no recente julgamento da ADI 3943 (2015), os ministros do STF registraram o mesmo entendimento, no sentido de que que, no plano individual ou coletivo, é necessário atentar ao art. 5º, LXXIV, da CRFB/88.


Em seu voto, que foi acolhido pelos demais Ministros, a Min. Rel. Cármen Lúcia registrou: “Não se está a afirmar a desnecessidade de a Defensoria Pública observar o preceito do art. 5º, LXXIV, da CF, reiterado no art. 134 — antes e depois da EC 80/2014. No exercício de sua atribuição constitucional, é necessário averiguar a compatibilidade dos interesses e direitos que a instituição protege com os possíveis beneficiários de quaisquer das ações ajuizadas, mesmo em ação civil pública”.


Justamente por isso, como registrou o Min. Barroso, a Defensoria não teria legitimidade ajuizar uma ação civil pública em benefício dos clientes do Banco Itaú Personnalité.


À luz do que foi discutido no STF, é possível concluir que a Defensoria Pública possui legitimidade para ações coletivas, mesmo que elas não beneficiem apenas pessoas pobres. Contudo, por imposição do art. 134 da CRFB/88, que alude ao art. 5º, LXXIV, da CRFB/88, a ação coletiva deve ter como possíveis beneficiários pessoas hipossuficientes sob o aspecto econômico.


2ª DISCUSSÃO - A segunda grande discussão consiste em saber quais interesses ou direitos metaindividuais podem ser tutelados pela Defensoria via ACP. Há três correntes sobre o tema:


1ª corrente - Entende que nenhum desses direitos pode ser defendido pela Defensoria. Foi a corrente defendida pela CONAMP (órgão de classe do MP), que ajuizou no STF a ADI 3943, sustentando que a Lei 11.448/07 (que acrescentou a legitimidade da Defensoria na LACP) é inconstitucional, por violação dos artigos 129, III, 134 e 127 da CF. Alegaram que a CF prevê a legitimidade para a proteção dos direitos metaindividuais somente do MP, e não da Defensoria, de modo que a norma da LACP que prevê legitimidade da Defensoria é inconstitucional. Por óbvio, não foi acolhida pelo STF no julgamento da referida ADI em 2015.


2ª corrente (Teori Albino Zavascki) - Entende que a Defensoria pública somente pode ajuizar ação civil pública para a tutela dos interesses individuais homogêneos dos necessitados. Isso porque, em tais direitos, seus titulares são determináveis (e determinados, quando da execução). Para Zavascki, a atuação da Defensoria só tem lugar quando há sujeitos identificados, a fim de se saber se existe ou não hipossuficiência econômica. Só tem direito a executar a sentença aquele que comprove, na execução, que é hipossuficiente (econômico ou organizacional). Ver seu voto vencido no REsp 912849/RS. Também não foi a corrente acolhida pelo STF no julgamento da ADI 3943, em 2015.


3ª corrente (STF) - Entende que a Defensoria Pública pode ajuizar ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos.


Pode haver parcela de não necessitados na coletividade protegida pela defensoria pública? SIM. Segundo o STF, não se pode exigir que a ação coletiva apenas beneficie necessitados.


É importante notar que, no julgamento da ADI 3943, o que o STF deixou claro é que a legitimação coletiva da Defensoria Pública é constitucional. Ou seja, a previsão, na LACP, é constitucional. A Defensoria tem capacidade de estar em juízo nas ações coletivas, mas isso não significa que a sua legitimidade ad causam é irrestrita. Em síntese:


a) O que se decidiu, no julgamento da ADI 3943, é que a legitimação da Defensoria Pública é constitucional, mesmo antes da Lei nº 11.448/2007, eis que o art. 5º, da LACP e o art. 82, II, do CDC já previam que a ACP poderia ser proposta pela União e pelos Estados (e a Defensoria Pública é órgão da União – DPU – ou dos Estados – DPE);


b) Os Ministros (destaque: Min. Rela. Cármen Lúcia, Min. Teori Zavascki, Min. Barroso e Min. Rosa Weber), em seus votos, deixaram claro que o juízo poderá aferir, no caso concreto, a adequada representação. É possível dizer que todos os legitimados se sujeitam ao controle da legitimação coletiva, o que, segundo precedentes do STJ e do STF, se faz à luz da pertinência subjetiva (no caso da Defensoria, extraído do art. 134 da CRFB/88);


c) Assim, ficou registrado nos debates, quando do julgamento da ADI 3943, que a legitimação da Defensoria não é irrestrita, devendo ser observado o preceito do art. 5º, LXXIV, da CF, reiterado no art. 134 — antes e depois da EC 80/2014. No exercício de sua atribuição constitucional, é necessário averiguar a compatibilidade dos interesses e direitos que a instituição protege com os possíveis beneficiários hipossuficientes. O que não se pode é impor à Defensoria que ajuíze ações em benefício apenas de pessoas pobres ou que os identifique na inicial, sendo possível que esta mesma ação beneficie outros grupos;


d) Não existe limitação abstrata objetiva, ou seja, a Defensoria pode ajuizar ações coletivas para a defesa de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, mas, em qualquer caso (mesmo no caso dos direitos difusos), a legitimação é controlável, como qualquer outro legitimado. Assim, a limitação é de ordem subjetiva (possíveis beneficiários);


e) MUITA ATENÇÃO: é equivocado dizer que os direitos difusos são titularizados por "todas as pessoas", mas sim por um grupo indeterminável. Embora seus titulares sejam indetermináveis no momento do ajuizamento da ação e o seu objeto seja indivisível, ainda assim, é possível o controle do legitimado coletivo. Justamente por isso, não é correto dizer que a Defensoria Pública pode ajuizar ações coletivas em defesa de qualquer interesse difuso. A título de exemplo, a Defensoria Pública não pode ajuizar ação civil pública para combater propaganda enganosa de um veículo BMW. Levando-se em consideração que a vedação à propaganda enganosa é classicamente um direito difuso (eis que protege, sobretudo, futuros compradores desavisados, integrantes de um grupo indeterminável) – e que um BMW não custa menos de R$100.000,00 -, podemos concluir claramente que mesmo em relação a tais direitos é possível o controle da legitimação coletiva. Foi nessa linha o voto do Min. Barroso na ADI 3943. É até mesmo uma questão de bom senso: não é adequado que um órgão criado para proteger os necessitados foque sua atuação na defesa dos grupos mais favorecidos da sociedade.


Em conclusão: é constitucional a legitimação da Defensoria para ajuizar ações coletivas em defesa de direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, desde que, de alguma forma, possam vir a ser beneficiadas pessoas sem recursos.

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