Processos coletivos: a legitimidade processual na ação popular
Atualizado: há 4 dias

A ação popular é um mecanismo constitucional de controle popular da legalidade dos atos administrativos. Cuida-se de ação de caráter cívico-administrativo que tem origem na actio popularis romana. No direito romano, a ação popular consistia em um instrumento processual através do qual qualquer cidadão romano podia atuar como representante da coletividade para defender interesses públicos. No título ne popularibus actionibus do Digesto (D. 47.23.1), consta que “nós chamamos ação popular àquela ação através da qual alguém protege o seu direito e o direito do povo" (Eam popularem actionem decimus quae suum ius populi tuetur).
Este instrumento surgiu durante o período da República romana e se desenvolveu significativamente durante o período do Império. Diferentemente das ações privadas, que exigiam um interesse direto da parte autora, a ação popular podia ser proposta por qualquer cidadão romano (quivis ex populo), desde que estivesse em pleno gozo de seus direitos civis. O objeto desta ação estava intrinsecamente ligado à proteção de bens e direitos de uso comum do povo (res publicae). Isto incluía a proteção de vias públicas, monumentos, sepulturas, aquedutos e outros bens de uso coletivo. Além disso, a ação popular também podia ser utilizada para combater condutas que prejudicassem o interesse público, como a adulteração de editos do pretor ou a violação de sepulturas[1].
A ação popular romana também apresentava características de ação privada, uma vez que o autor da ação podia receber parte da multa aplicada ao réu em caso de condenação. Este aspecto funcionava como um incentivo para que os cidadãos exercessem seu papel na fiscalização e proteção dos interesses coletivos.
No Brasil, ela está presente desde a nossa primeira Constituição. O art. 157 da Constituição Imperial de 1824 estabelecia que “por suborno, peita, peculato, e concussão haverá contra elles acção popular, que poderá ser intentada dentro de anno, e dia pelo proprio queixoso, ou por qualquer do Povo, guardada a ordem do Processo estabelecida na Lei”. Essa disposição tem nítida inspiração no Direito Romano – em que a ação popular integrava o gênero actiones poenales. Tratava-se de instrumento bastante diverso da ação popular como a conhecemos hoje, que surgiu na Constituição da República de 1934[2]. De acordo com o art. 113, 38, da CR/1934, “qualquer cidadão será parte legitima para pleitear a declaração de nullidade ou annullação dos actos lesivos do patrimonio da União, dos Estados ou dos Municipios”.
Cuida-se de uma ação constitucional cível, cuja legitimidade é atribuída a qualquer cidadão, objetivando invalidar atos ou contratos administrativos que causem lesão ao patrimônio público ou ainda à moralidade administrativa, ao patrimônio histórico e cultural e ao meio ambiente.
Atualmente, a ação popular tem previsão no art. 5º, LXXIII da CRFB/88:
Art. 5º, LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
Esse dispositivo constitucional é regulado pela n. Lei 4.717/65 (LAP), surpreendentemente promulgada no período da ditadura militar e ainda vigente. Além deste diploma, não se pode esquecer que a ação popular é uma ação coletiva, aplicando-se, portanto, naquilo que for possível, as disposições da LACP e do CDC.
A mais marcante característica da ação popular é a sua legitimidade. Conforme disposto na Constituição, ela é reservada a “qualquer cidadão”, razão pela qual, nos termos do enunciado de súmula n. 365/STF, “pessoa jurídica não pode propor ação popular”. Cuida-se de hipótese típica de legitimação extraordinária. Entende-se por cidadão a pessoa natural que esteja em pleno gozo dos direitos políticos, podendo ajuizar a ação mesmo fora do seu domicílio eleitoral. Conforme o art. 1º, § 3º, da LAP, a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral ou com documento que a ele corresponda. Como a cidadania começa aos 16 (dezesseis) anos de idade, tem legitimidade ativa para a ação popular o maior de 16 anos, mesmo sem assistência, sendo necessário advogado. Ainda, é facultado a qualquer cidadão se habilitar como litisconsorte ou assistente do autor da ação popular (art. 6º, § 5º).
Disso decorre que o indivíduo condenado criminalmente, enquanto durarem os efeitos da condenação, não pode propor ação popular, em razão da suspensão dos direitos política. Também não pode o estrangeiro, nem o Ministério Público.
O art. 6º, § 4º, da LAP, cuida do papel Ministério Público no processamento de ações populares: ele “acompanhará a ação, cabendo-lhe apressar a produção da prova e promover a responsabilidade, civil ou criminal, dos que nela incidirem, sendo-lhe vedado, em qualquer hipótese, assumir a defesa do ato impugnado ou dos seus autores”.
Excepcionalmente, embora não possa ajuizar diretamente a ação popular, o Ministério Público poderá figurar como parte autora. Isso decorre da regra do art. 9º da LAP, a dispor que se o autor desistir da ação serão publicados editais nos prazos e condições previstos no art. 7º, inciso II, “ficando assegurado a qualquer cidadão, bem como ao representante do Ministério Público, dentro do prazo de 90 (noventa) dias da última publicação feita, promover o prosseguimento da ação”.
Quanto à legitimidade passiva, segundo preceitua o art. 6º da LAP, a ação popular será proposta em desfavor, entre outros, das “autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos deste”. Como informa Rodolfo de Camargo Mancuso, a razão legislativa do preceito é a de “estabelecer um espectro o mais abrangente possível, de modo a empolgar no polo passivo não só o causador ou produtor direto do ato ou conduta sindicados, mas também todos aqueles que, de algum modo, para eles contribuíram por ação ou omissão, e bem assim os que dele se tenham beneficiado diretamente”[3]. Esse é também o entendimento do STJ[4].
[1] Sobre o tema, ver: CLEMENTONI, Myriam Benarrós. Actio Popularis no Direito Romano e sua Recepção no Direito Brasileiro. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2016.
[2] LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 170.
[3] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Popular. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 203
[4] STJ, AgInt no REsp 1.389.434/RS, rel. min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 26/09/2017.
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