Humanística: o realismo jurídico norte-americano e o escandinavo

O realismo jurídico consiste em uma concepção sociológica do Direito (sociologismo jurídico). Correntes jurídicas sociológicas, fundadas por Émile Durkheim (1858-1917), se diferenciam do modelo sistemático-normativista, cujo objeto de análise são as categorias analíticas e o ordenamento jurídico positivo vigente (como é o caso da jurisprudência dos conceitos e do positivismo jurídico de autores mais contemporâneos, como Kelsen, Bobbio e Hart).
O que interessa para o sociologismo jurídico é algo bastante diverso: a eficácia social das normas jurídica, ou seja, a relação fática entre a sociedade (formação econômico-social) e o direito positivo[1]. Mais do que isso, interessa também investigar a relação entre os valores jurídicos e a sociedade, de modo a saber se tais valores são aceitos ou rechaçados pelas pessoas em geral. A grande crítica que se faz às concepções sociológicas do direito, a exemplo do realismo jurídico, consiste no perigo de resumir o fenômeno jurídico autêntico apenas àquilo que encontra aderência nas relações sociais (ou, em outras palavras, nas leis “que pegam”), deixando de lado o que está legitimamente previsto na Constituição e nos demais atos legislativos.
De uma forma geral, o sociologismo jurídico se divide em dois grandes grupos[2]:
a) Positivismo sociológico – Cuida-se da corrente mais radical do sociologismo jurídico, depositando no jurista a tarefa mecânica de descrever, de forma objetiva, o comportamento social, sem realizar valorações. Consequentemente, a ciência jurídica consiste em um ramo do saber meramente descritivo que se dissolve na sociologia.
b) Sociologismo jurídico moderado – Cuida-se de uma vertente que atribui ao jurista a tarefa de investigar, no seio do comportamento social, as formas de cumprimento dos fins do direito, descobrindo formas mais eficazes de sua realização.
Não se pode confundir, portanto, positivismo e sociologismo jurídicos. Trata-se de correntes antagônicas, na medida em que o positivismo é formalista e busca a “purificação” da ciência jurídica, afastando-a de considerações políticas ou sociológicas. O sociologismo, por sua vez, pode adquirir diversos vieses: relativistas, políticos, jusnaturalistas etc., sendo claramente contrário ao formalismo e averso a sistematizações conceituais (analítica).
Dentro do sociologismo jurídico, é possível encontrar variados autores de períodos e origens distintas, a exemplo da jurisprudência dos interesses de Philipp Heck (1858-1943), do movimento do Direito Livre de Gény (1871-1938), da concepção marxista do direito e do realismo jurídico americano e escandinavo.
O realismo jurídico norte-americano tem Oliver Wendell Holmes (1841-1936) como seu fundador. Holmes defende uma concepção judicial do fenômeno jurídico, por acreditar que o Direito não reside nas normas positivadas pelo legislador nem na segurança jurídica, mas sim nas regras que, com toda probabilidade, serão aplicadas pelos juízes. Preocupa-se, portanto, com um momento posterior à atividade legislativa: a aplicação das normas pelo Poder Judiciário. Aqui reside o elemento relevante: trata-se de uma concepção oposta ao positivismo jurídico.
Como destaca Luño, o realismo jurídico norte-americano de Holmes abriu caminho para a sociologia do Direito, ao afirmar que “a via do direito não é a lógica, mas sim a experiência jurisprudencial”, de modo que “estudo social do direito deve levar a prever o que os tribunais efetivamente fazem” a partir, preferencialmente, da economia e da sociologia“[3].
Em outras palavras, o realismo americano, ao considerar pequena a influência das regras jurídicas sobre as decisões judiciais, defende a aplicação de um método distinto e original aos problemas jurídicos. Esse método – sociológico – abrange investigações sobre diversos pontos de influência decisória, que vão desde a cultura, condição social e preconceitos dos juízes até o seu estado de saúde. Seguidores como o juiz Jerome Frank (1889-1957) chegam a afirmar que as decisões judiciais são influenciadas muito mais pela dieta dos juízes e estados de ânimo do que pelo princípio da certeza do Direito. O juiz seria, assim, o verdadeiro criador do Direito[4].
Não se pode perder de vista, contudo, que essa visão um tanto pessimista – e claramente instável – do fenômeno jurídico tem um componente histórico. É que o realismo norte-americano se desenvolveu num período marcado pela “crise dos valores tradicionais” e pela grande depressão econômica do final da década de 1920, época de grandes mudanças sociais e jurídicas[5].
Além dos Estados Unidos, o realismo jurídico também se desenvolveu nos países escandinavos, especialmente na Dinamarca, Suécia e Noruega. A escola escandinava – também conhecida como escola de Upsala – tem como principais expoentes Axel Hägerström (1868-1939), Wilhelm Lundstedt (1882-1955), Karl Olivecrona (1897-1980) e especialmente Alf Ross (1899-1979), discípulo de Hans Kelsen. Ela possui pontos de proximidade e de distanciamento, se comparada com o realismo norte-americano.
Entre os elementos comuns, destaca-se o propósito de racionalizar a análise do Direito. Os escandinavos acreditavam que a ciência jurídica estaria repleta de conteúdo “mítico ou mágico”, de origem sentimental, a exemplo das categorias de “direito subjetivo” e “dever jurídico”, desprovidas de utilidade. A mesma crítica é aplicada a expressões como “culpa”, “justiça” e “responsabilidade”, que não teriam “existência real”. Para tal escola, esses conceitos seriam meros resíduos de crenças mágicas antigas, devendo ser substituídos por uma análise fria, objetiva e rigorosamente científica do direito como puro fato social. Excluem-se, portanto, considerações abstratas, metafísicas e jusnaturalistas, vistas como categorias arbitrárias, na medida em que não poderiam ser verificadas empiricamente. Cuida-se, portanto, de uma corrente sociológica que, assim como o realismo americano, rejeita, ao mesmo tempo, o jusnaturalismo e o positivismo normativo formalista.
Apesar das proximidades, o realismo jurídico escandinavo difere do norte-americano em um importante ponto. É que o caráter realista dos escandinavos dedica suas atenções muito mais ao sistema jurídico considerado como um todo e menos na atuação concreta dos tribunais. Nesse sentido, defende Alf Ross que o direito objetivo deve ser concebido como um conjunto de diretrizes cuja validade reside na atuação prática de acordo com as suas prescrições[6]. O autor adere a uma tese neopositivista de que a validade de uma norma jurídica depende de sua verificação empírica, na medida em que o verdadeiro conteúdo das normas jurídicas são os fatos sociais. E arremata com um conceito de Direito: o conjunto de regras para o estabelecimento e funcionamento do aparato de força do Estado[7].
[1] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Teoría del Derecho. 18. ed. Madrid: Tecnos, 2019, p. 87.
[2] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Teoría del Derecho. 18. ed. Madrid: Tecnos, 2019, p. 88.
[3] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Teoría del Derecho. 18. ed. Madrid: Tecnos, 2019, p. 95.
[4] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Teoría del Derecho. 18. ed. Madrid: Tecnos, 2019, p. 96.
[5] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Teoría del Derecho. 18. ed. Madrid: Tecnos, 2019, p. 96.
[6] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Teoría del Derecho. 18. ed. Madrid: Tecnos, 2019, p. 97.
[7] No original: “national law system is the rules for the establishment and functioning of the State machinery of force” (ROSS, Alf. On law and justice. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1959, p. 34).
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