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Foto do escritorJoão Paulo Lordelo

Sentido lato de Justiça, como valor universal




A palavra “justiça” deriva do nome da deusa romana Justitia (equivalente à deusa grega Dice ou Diké), que ostenta, em uma das mãos, uma balança (simbolizando o ato de sopesar as coisas), e na outra uma espada (que simboliza a autoridade do direito).

Apesar das inúmeras divergências a respeito do conteúdo do conceito de justiça, é possível ao menos concebê-la por meio de dois sentidos – ou dois grupos – definidos. Cuida-se, é verdade, de uma divisão generalista, mas capaz de imprimir alguma objetividade ao tema.


Assim, num primeiro sentido (sentido lato), a palavra “justiça” é concebida como um valor universal. Tal viés ostenta uma natureza claramente jusnaturalista da justiça, que pode ser sintetizada como a adequação da conduta humana a uma ordem natural ou divina que lhe é anterior.


Tal sentido de justiça nos remonta à filosofia clássica, em especial alguns autores gregos e romanos, responsáveis pelos primeiros debates acerca do conceito de justiça. Em tal momento histórico, não existia uma separação clara entre justiça e ética, razão pela qual a aplicação do direito pode ser denominada “aplicação prudencial do direito”. Tampouco existia diferença entre ética e moral, o que nos leva à seguinte conclusão: na filosofia clássica, direito, ética e moral se encontram no mesmo campo.


Para o estoicismo (que tem como referência maior Zenão de Cítio), a justiça se confunde com “justeza” a um modelo cósmico. Para os estoicos, justo é tudo aquilo que se “ajusta” ao cosmos, como explica Luc Ferry:


Juntar-se ou ajustar-se ao cosmos, eis, aos olhos dos estoicos, a palavra de ordem de toda ação justa, o princípio de toda moral e de toda política. Porque a justiça é primeiramente justeza: assim como um ebanista ou um luthier ajusta uma peça de madeira num conjunto maior, um móvel ou um violino, não temos nada melhor a fazer além de tentar nos ajustar à ordem harmoniosa e boa que a thoeria acaba de nos desvendar[1].

Essa pode ser considerada a síntese do pensamento clássico a respeito do conceito de justiça. Ela deriva de relatos mitológicos, a exemplo da Teogonia de Hesíodo, escrita no século VII a.C., que trata da criação do universo e das divindades, e da Odisseia de Homero, escrita no século VIII a.C. Tanto Platão, Aristóteles e os estoicos partem do pressuposto de que o mundo não é um caos, uma desordem, mas sim uma ordem perfeitamente harmoniosa, chamada de “cosmos”[2]. Essa ordem cósmica seria, ao mesmo tempo, justa, bela e boa, e cada indivíduo teria o seu lugar numa hierarquia universal, decorrente das suas características “naturais”. Nesse contexto, a justiça reside na “aderência” ao cosmos, no respeito ao papel reservado a cada um, de acordo com seus talentos e defeitos.


Há, todavia, autores clássicos com pensamento muito particulares, que constituem referências milenares, a merecer dedicada atenção. Vamos a eles.


O primeiro a ser citado é ninguém menos que Sócrates (469-399 a. C.). O “pai da filosofia” nunca chegou a escrever uma obra, sendo, em realidade, narrado nas obras de Platão, seu discípulo. Sócrates trava uma verdadeira batalha contra os sofistas, acusados por ele de manipulação argumentativa em torno de falsas verdades. Para os sofistas, a justiça residia na lei e nada mais. Sócrates vai além: para ele, a justiça não reside apenas na observância das leis convencionais (embora efetivamente a envolva), mas também nas leis naturais (e divinas) que regem a vida dos seres humanos. Há aqui, portanto, um componente ético que não se resume no convencionalismo das leis estatais, mas também na divindade (que, neste momento, se confunde com a ordem cósmica que organiza e rege absolutamente tudo). Justo é aquele que respeita as leis escritas, as leis naturais e, portanto, realiza o bem comum da polis.


Não por acaso, muito embora tenha sido condenado à morte injustamente, Sócrates optou por não fugir, afirmando que não seria justo fugir da aplicação da sua pena. E conclui: pior que sofrer uma injustiça é cometê-la.


Discípulo de Sócrates, Platão (348-347 a.C.) foi o responsável por incorporar sua filosofia e divulgá-la, em especial por meio dos chamados diálogos. Mais do que isso, Platão é o autor da obra República, uma das maiores referências da filosofia ocidental. A obra começa com um diálogo em que Sócrates, apresentado como um personagem, discute com outros atenienses – Céfalo, Trasímaco, Polemarco e Glauco – o que significa a justiça. Para Céfalo, justiça consistiria em dizer a verdade e restituir o que é do outro. Para Polemarco, justiça consiste no ato de dar benefícios aos amigos e prejuízos aos inimigos. Para Trasímaco, justiça é o que é vantajoso para o mais forte. Sócrates então, apresentado por Platão, desconstrói uma a uma das ideias apresentadas. Platão releva, por meio do personagem de Sócrates, que a busca pela justiça em uma pessoa depende da análise do que é justo em uma cidade – a polis.


A partir das características de uma cidade-Estado ideal, comandada por filósofos, Platão informa o que compreende por justiça. Para ele, a justiça consiste em uma virtude proeminente, que possui destaque sobre outras virtudes humanas (como a coragem e o conhecimento). Ela é a responsável por organizar as três potências da alma humana, quais sejam, o lado racional, o lado dos impulsos e fatos e o lado das necessidades básicas.


A partir de tais potência da alma (como algo ideal), Platão desenvolve a sua teoria de organização social (da polis), de forma hierárquica e aristocrática, cada um com funções determinadas, cabendo aos sábios e filósofos o encargo de governar. Assim, justo é aquele que obedece a essa ordem harmoniosa e divina, espelhando-se nos princípios da alma.


Discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.) pode ser considerado um dos maiores filósofos de todos os tempos. Dentre suas intensas obras, encontra-se o clássico Ética a Nicômaco, verdadeiro tratado ético que inspirou toda a filosofia que lhe sucedeu. O filósofo inaugura duas observações importantes a respeito da justiça: a) a justiça é teleológica (ou seja, voltada a um propósito); b) a justiça é honorífica[3]. Esses sãos os seus pressupostos, dos quais são desenvolvidos alguns conceitos gerais de justiça, a partir da compreensão de que tal palavra é dotada de vários sentidos.

Explicando melhor seus pressupostos, para Aristóteles, as discussões sobre justiça são “debates sobre a honra, a virtude e a natureza de uma vida boa”, não existindo uma separação entre o justo e o ético (ou moral)[4]. Cuida-se, pois, de uma concepção, ao mesmo tempo, teleológica (por buscar realizar “a boa vida”) e honorífica (por associar a ideia de boa vida às “boas virtudes”).


Muito do que escreve Aristóteles sobre ética e justiça está ligado à ideia da “vida boa”, a excelência maior buscada por todas as pessoas, que está ligada à busca pelos talentos inatos de cada ser humano. O justo deve cultivar as boas virtudes.


Um dos primeiros conceitos de justiça trabalhados pelo filósofo consiste na justiça geral (ou total), que pode ser compreendida como a soma de todas as virtudes, o respeito às leis morais e às leis do Estado. Sintetizando-se tal sentido, é possível afirmar que aquele que atua conforme as leis possui a excelência moral de ser justo. Em tal ponto, convém ressaltar que o filósofo não resume a justiça à lei estatal (justo legal, objeto de convenção): da justiça política, uma parte é natural, a outra é legal. A natural tem em qualquer lugar a mesma eficácia, e não depende das nossas opiniões; a legal é, em sua origem, indiferente que se faça assim ou de outro modo; mas, uma vez estabelecida, deixa de ser indiferente[5].


Para além da justiça geral, é possível falar também em uma justiça particular (ou parcial), que consiste na expressão da igualdade (ou isonomia). Da justiça particular, podem ser desdobradas duas subcategorias: a) justiça distributiva (a “justa medida”) e; b) justiça comutativa (ou sinalagmática).


Pela linha distributiva, a justiça significa dar a cada pessoa o que ela merece (mérito[6]), inaugurando uma espécie de isonomia proporcional (“tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente”). É a justiça que se pratica nas distribuições de posições, dinheiro ou qualquer outro bem às pessoas em geral. E para saber o que é devido a quem, é necessário olhar não apenas para as pessoas, mas também para os objetos que estão sendo distribuídos: “para determinar a justa distribuição de um bem, temos que procurar o télos, ou o propósito, do bem que está sendo distribuído”[7]. Os bens devem ser distribuídos àqueles que possuem maior excelência para executar o seu propósito. Em termos atuais, seria como dizer que os melhores carros deveriam ser distribuídos aos melhores motoristas (e não às pessoas mais ricas, por exemplo).


A justiça corretiva, por sua vez, tem por objetivo o “restabelecimento do equilíbrio rompido entre os particulares: a igualdade aritmética”[8]. Ela é exercida pelos juízes, que realizam a aplicação prudencial do direito, decidindo o que é justo para cada um, em situações de responsabilidade penal ou civil entre particulares: é a que desempenha função corretiva nas relações entre as pessoas. Esta última se subdivide em duas: algumas relações são voluntárias e outras são involuntárias; são voluntárias a venda, a compra, o empréstimo a juros, o penhor, o empréstimo sem juros, o depósito e a locação (estas relações são chamadas voluntárias porque sua origem é voluntária); das involuntárias, algumas são sub-reptícias (como o furto, o adultério, o envenenamento, o lenocínio, o desvio de escravos, o assassino traiçoeiro, o falso testemunho), e outras são violentas, como o assalto, a prisão, o homicídio, o roubo, a mutilação, a injúria e o ultraje[9].


Curiosamente, no mundo romano, a ideia de justiça não se desenvolve da mesma forma. Ao contrário do que se pensa, os romanos eram incrivelmente pragmáticos, sem muitas divagações sobre o que é o justo, de forma abstrata. Assim, em Roma, a justiça e o direito representavam a mesma coisa, um fenômeno que continuava a ostentar o caráter sagrado, consistente na aplicação da prudência. Daí advém a palavra “jurisprudência” (a aplicação prudencial do direito, como explica Tércio Ferraz Jr.).

Posteriormente, no período medieval, autores como Tomás de Aquino e Agostinho, que se dedicaram às obras aristotélicas, desenvolveram (e repetirão) os conceitos trazidos por Aristóteles e também por Ulpiano, somando-se as noções de igualdade e de justiça como ato de “dar a cada um o que é seu”.


[1]    FERRY, Luc. Aprender a viver: filosofia para os novos tempos. Kindle edition. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, posição 491-496.

 

[2]    FERRY, Luc; CAPELIER, Claude. A mais bela história da filosofia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2022, p. 29.

 

[3]    SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012, p. 233.

 

[4]    SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012, p. 234.

 

[5]    ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2.ª edição, 1992, p. 102.

 

[6]    Embora faça alusão ao critério da repartição de bens de acordo com o mérito de cada um, Aristóteles reconhece que não existe um critério único para definir o que se entende por mérito. Para os democráticos, o fundamental reside na liberdade; para os oligárquicos, na riqueza ou nobreza; para os aristocráticos, na virtude.

 

[7]    SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012, p. 234.

 

[8]    BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia do direito. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 135.

 

[9]    ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. São Paulo. Nova Cultural: 1996, p. 197.

 

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